Florianópolis e a Ausência do Transporte Marítimo: Um Retrocesso na Mobilidade Urbana

Florianópolis ostenta belezas naturais exuberantes, um rico patrimônio cultural, uma geografia ímpar cercada por mar e, pasmém, sem transporte marítimo. Paradoxalmente, apesar de toda essa vocação náutica, a capital catarinense ainda não conta com um sistema de transporte marítimo público regular. Esta ausência não é apenas um descuido logístico; é um reflexo de escolhas políticas, interesses privados e falta de visão estratégica que impactam diretamente a qualidade de vida da população.

A Geografia que Pede o Mar

Florianópolis possui um dos contextos geográficos mais propícios do Brasil para o transporte hidroviário. A cidade é dividida entre a ilha e o continente, conectada por três pontes — Pedro Ivo Campos, Colombo Salles e Hercílio Luz—, todas frequentemente congestionadas. Com uma população que ultrapassa meio milhão de habitantes (e que dobra em temporadas turísticas), a infraestrutura viária é claramente insuficiente. Diariamente, moradores de bairros como Coqueiros, Estreito e continente em geral enfrentam longas filas para acessar o centro da cidade.

O cenário é ainda mais dramático para quem vive nos extremos da Ilha — como nos bairros do Sul (Ribeirão da Ilha, Tapera) ou do Norte (Ingleses, Santinho, Canasvieiras) — e precisa se deslocar até o Centro. O transporte coletivo terrestre, majoritariamente rodoviário e operado por consórcios privados, sofre com a lentidão do tráfego, falta de integração eficiente e conforto precário.

O Transporte Marítimo Como Solução

Implantar um sistema de transporte marítimo regular e eficiente em Florianópolis traria inúmeros benefícios. Primeiramente, reduziria significativamente o tempo de deslocamento entre pontos estratégicos da cidade. Trajetos como Santo Antônio de Lisboa ao Centro, ou mesmo de Coqueiros à Beira-Mar Norte, poderiam ser realizados em menos de 15 minutos por via marítima — tempo impensável nos horários de pico pelas rotas terrestres.

Além disso, o modal hidroviário é ambientalmente mais sustentável. Em tempos de mudanças climáticas e metas de redução de emissão de carbono, priorizar meios de transporte de baixo impacto ambiental deveria ser prioridade de qualquer administração pública responsável. As embarcações elétricas ou híbridas já são uma realidade em diversas partes do mundo e poderiam ser integradas ao plano de mobilidade urbana de Florianópolis.

Outro aspecto positivo seria a descentralização da mobilidade. Um sistema de transporte marítimo estimularia o desenvolvimento urbano em regiões atualmente menos valorizadas, como bairros ribeirinhos e costeiros, promovendo distribuição econômica mais justa e inclusiva.

Os Interesses que Impedem a Navegação

Se os benefícios são tão evidentes, por que Florianópolis ainda não tem transporte marítimo?

A resposta passa, inevitavelmente, por interesses políticos e econômicos. O setor de transporte coletivo rodoviário, atualmente operado por consórcios privados, exerce forte influência nas decisões políticas locais. Um sistema marítimo eficiente e competitivo representaria uma ameaça direta ao monopólio do transporte terrestre, reduzindo o número de passageiros dos ônibus e afetando lucros consideráveis. Não à toa, tentativas anteriores de implementar linhas marítimas foram abandonadas ou boicotadas por falta de integração tarifária ou ausência de incentivo público.

Outro entrave são os interesses imobiliários. A implantação de terminais náuticos nas regiões costeiras valorizaria algumas áreas, mas também colocaria pressão sobre terrenos e imóveis ocupados irregularmente ou não regulamentados, provocando resistência de certos grupos econômicos e políticos. A falta de planejamento urbano adequado e a negligência histórica com a orla da cidade agravam ainda mais o problema.

A ausência de vontade política e a falta de continuidade administrativa também têm papel determinante. Em várias gestões municipais, o transporte marítimo foi pauta de campanha, mas nunca saiu do papel de forma efetiva. Projetos-piloto são realizados de forma pontual, sem compromisso com expansão ou integração real ao sistema de mobilidade.

Exemplos que Florianópolis Poderia Seguir

Florianópolis está longe de ser a única cidade costeira do Brasil, e há bons exemplos a serem seguidos tanto no território nacional quanto internacional.

No Brasil, o caso de Niterói e Rio de Janeiro é emblemático. A travessia das barcas Rio-Niterói é um sistema consolidado e utilizado por milhares de passageiros diariamente, com tempo de viagem inferior ao do transporte rodoviário. Em Belém, o transporte fluvial é amplamente utilizado entre ilhas e áreas ribeirinhas. Em Salvador, foi implantado um sistema moderno de lanchas para ligação com a Ilha de Itaparica.

Fora do país, cidades como Istambul (Turquia), Veneza (Itália), Nova York (EUA) e Sydney (Austrália) utilizam seus rios, baías e oceanos como parte integrante de seus sistemas de transporte público. Em Estocolmo, na Suécia, os “båtbussar” (ônibus-barco) são operados como parte da rede de transporte municipal, com integração tarifária, pontualidade e conforto.

Essas cidades entenderam que o transporte sobre a água não é luxo, nem apenas para turistas, mas sim uma ferramenta poderosa de mobilidade, inclusão e sustentabilidade.

Mobilidade Urbana em Florianópolis Durante o Ironman

Durante o Ironman, diversas vias principais da cidade, como a Avenida Beira-Mar Norte, Via Expressa Sul e SC-401, sofrem interdições e desvios para acomodar as provas de ciclismo e corrida. Por exemplo, a Beira-Mar Norte é compartilhada entre veículos e ciclistas, com faixas junto ao canteiro central destinadas exclusivamente aos atletas. Além disso, os cruzamentos são fechados, e os motoristas são orientados a seguir por rotas alternativas, como a Avenida Gustavo Richard e o túnel Antonieta de Barros .

Essas mudanças, embora necessárias para a realização do evento, geram congestionamentos e dificultam o deslocamento diário dos moradores. A interdição de vias estratégicas impacta o transporte público, o comércio local e a rotina dos cidadãos. Embora a Prefeitura de Florianópolis, em parceria com a Guarda Municipal e a Polícia Rodoviária Estadual, se empenhe em organizar e sinalizar as alterações, o volume de veículos e a falta de alternativas eficientes de transporte coletivo tornam o trânsito caótico em diversas regiões da cidade.

Esse cenário evidencia a necessidade urgente de investimentos em infraestrutura urbana e planejamento de mobilidade. Projetos como a implementação de corredores exclusivos para ônibus, a expansão do Sistema Integrado de Mobilidade (SIM) e o transporte maritimo são essenciais para minimizar os impactos de eventos temporários e melhorar a qualidade de vida dos florianopolitanos.

Enquanto o Ironman representa uma celebração do esporte e da saúde, também destaca as fragilidades da mobilidade urbana em Florianópolis, exigindo ações concretas para um futuro mais sustentável e eficiente.

Conclusão: O Mar Não Pode Ser Um Obstáculo

É inadmissível que Florianópolis continue a tratar o mar como uma barreira, quando ele deveria ser uma via. O transporte marítimo não é uma utopia — é uma necessidade. Sua ausência representa mais do que um problema de trânsito: é um símbolo do atraso político, da submissão a interesses privados e da falta de visão estratégica de longo prazo.

O futuro da mobilidade urbana passa pela diversidade modal. Florianópolis precisa romper com os interesses que mantêm a cidade refém dos congestionamentos e das tarifas abusivas. Precisa ouvir sua geografia e sua população. O mar está ali, disponível, pronto para ser parte da solução. O que falta, tristemente, é coragem para navegar.

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